sexta-feira, 10 de abril de 2009

Medida Provisória - Separação de Poderes - Poder de Agenda do Congresso Nacional

Medida Provisória - Separação de Poderes - Poder de Agenda do Congresso Nacional (Transcrições)

MS 27931 MC/DF*

RELATOR: MIN. CELSO DE MELLO

DECISÃO: Trata-se de mandado de segurança preventivo, com pedido de liminar, impetrado por ilustres membros do Congresso Nacional contra decisão do Senhor Presidente da Câmara dos Deputados que “(...) formalizou, perante o Plenário da Câmara dos Deputados, seu entendimento no sentido de que o sobrestamento das deliberações legislativas – previsto no § 6º do art. 62 da Constituição Federal – só se aplicaria, supostamente, aos projetos de lei ordinária” (fls. 03/04 - grifei).

A decisão questionada nesta sede mandamental, proferida pelo eminente Senhor Presidente da Câmara dos Deputados, está assim ementada (fls. 53):

“Responde à questão de ordem do Deputado Regis de Oliveira com uma reformulação e ampliação da interpretação sobre quais são as matérias abrangidas pela expressão ‘deliberações legislativas’ para os fins de sobrestamento da pauta por medida provisória nos termos da Constituição; entende que, sendo a medida provisória um instrumento que só pode dispor sobre temas atinentes a leis ordinárias, apenas os projetos de lei ordinária que tenham por objeto matéria passível de edição de medida provisória estariam por ela sobrestados; desta forma, considera não estarem sujeitas às regras de sobrestamento, além das propostas de emenda à Constituição, dos projetos de lei complementar, dos decretos legislativos e das resoluções - estas objeto inicial da questão de ordem - as matérias elencadas no inciso I do art. 62 da Constituição Federal, as quais tampouco podem ser objeto de medidas provisórias; decide, ainda, que as medidas provisórias continuarão sobrestando as sessões deliberativas ordinárias da Câmara dos Deputados, mas não trancarão a pauta das sessões extraordinárias.” (grifei)

Busca-se, agora, com o presente mandado de segurança, ordem judicial que determine, “(...) ao Presidente da Câmara dos Deputados, que se abstenha de colocar em deliberação qualquer espécie de proposição legislativa, até que se ultime a votação de todas as medidas provisórias que, eventualmente, estiverem sobrestando a pauta, nos termos do § 6º do art. 62 da Constituição (...)” (fls. 15 - grifei).
O Senhor Presidente da Câmara dos Deputados, ao proferir a decisão em referência, assim fundamentou, em seus aspectos essenciais, o entendimento ora questionado (fls. 46/48):

“(...) quero dizer - já faço uma síntese preliminar – que, além das resoluções, que podem ser votadas apesar do trancamento da pauta por uma medida provisória, também assim pode ocorrer com as emendas à Constituição, com a lei complementar, com os decretos legislativos e, naturalmente, com as resoluções.
Dou um fundamento para esta minha posição.
O primeiro fundamento é de natureza meramente política. Os senhores sabem o quanto esta Casa tem sido criticada, porque praticamente paralisamos as votações em face das medidas provisórias. Basta registrar que temos hoje 10 medidas provisórias e uma décima primeira que voltou do Senado Federal, porque lá houve emenda, que trancam a pauta dos nossos trabalhos. Num critério temporal bastante otimista, essa pauta só será destrancada no meio ou no final de maio, isso se ainda não voltarem para cá outras medidas provisórias do Senado Federal, com eventuais emendas, ou, ainda, outras vierem a ser editadas de modo a trancar a pauta.
Portanto, se não encontrarmos uma solução, no caso, interpretativa do texto constitucional que nos permita o destrancamento da pauta, nós vamos passar, Deputadas e Deputados, praticamente esse ano sem conseguir levar adiante as propostas que tramitam por esta Casa que não sejam as medidas provisórias. Aqui, estou me cingindo a colocações de natureza política. Eu quero, portanto, dar uma resposta à sociedade brasileira, dizendo que nós encontramos, aqui, uma solução que vai nos permitir legislar.
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Fechada a explicação de natureza política, eu quero dar uma explicação de natureza jurídica que me leva a esse destrancamento. A primeira afirmação que quero fazer, agora sob o foco jurídico, é uma afirmação de natureza genérica. (...).
Uma primeira é que esta Constituição - sabemos todos – inaugurou, política e juridicamente, um estado democrático de direito. Não precisamos ressaltar que nasceu como fruto do combate ao autoritarismo. Não precisamos ressaltar que surgiu para debelar o centralismo. Não precisamos repisar que surgiu para igualar os poderes e, portanto, para impedir que um dos poderes tivesse uma atuação política e juridicamente superior à de outro poder, o que ocorria no período anterior à Constituinte de l988.
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E, na seqüência, estabeleceu uma igualdade absoluta entre os poderes do Estado, ou seja, eliminou aquela ordem jurídica anterior que dava prevalência ao Poder Executivo e, no particular, ao Presidente da República.
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Ao distribuir essas funções, a soberania popular, expressada na Constituinte, estabeleceu funções distintas para órgãos distintos. Para dizer uma obviedade, Executivo executa, Legislativo legisla e Judiciário julga.
Portanto, a função primacial, primeira, típica, identificadora de cada um dos poderes é esta: execução, legislação e jurisdição.
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No caso do Legislativo, essa atividade foi entregue ao órgão do poder chamado Poder Legislativo.
Pode haver exceção a esse princípio? Digo eu: pode e há. Tanto que, em matéria legislativa, o Poder Executivo, por meio do Presidente da República, pode editar medidas provisórias com força de lei, na expressão constitucional.
É uma exceção ao princípio segundo o qual ao Legislativo incumbe legislar.
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Então, volto a dizer: toda vez que há uma exceção, esta interpretação não pode ser ampliativa. Ao contrário. A interpretação é restritiva. Toda e qualquer exceção retirante de uma parcela de poder de um dos órgãos de Governo, de um dos órgãos de poder, para outro órgão de Governo, só pode ser interpretada restritivamente.
Muito bem. Então, registrado que há uma exceção, nós vamos ao art. 62 e lá verificamos o seguinte: que a medida provisória, se não examinada no prazo de 45 dias, sobresta todas as demais deliberações legislativas na Casa em que estiver tramitando a medida provisória. Mas, aí, surge uma pergunta: de que deliberação legislativa está tratando o texto constitucional? E eu, aqui, faço mais uma consideração genérica.
A interpretação mais prestante na ordem jurídica do texto constitucional é a interpretação sistêmica. Quer dizer, eu só consigo desvendar os segredos de um dispositivo constitucional se eu encaixá-lo no sistema. É o sistema que me permite a interpretação correta do texto. A interpretação literal - para usar um vocábulo mais forte - é a mais pedestre das interpretações.
Então, se eu ficar na interpretação literal, ‘todas as deliberações legislativas’, eu digo, nenhuma delas pode ser objeto de apreciação. Mas não é isso o que diz o texto. Eu pergunto, e a pergunta é importante: uma medida provisória pode versar sobre matéria de lei complementar? Não pode. Há uma vedação expressa no texto constitucional. A medida provisória pode modificar a Constituição? Não pode. Só a emenda constitucional pode fazê-lo. A medida provisória pode tratar de uma matéria referente a decreto legislativo, por exemplo, declarar a guerra ou fazer a paz, que é objeto de decreto legislativo? Não pode. A medida provisória pode editar uma resolução sobre o Regimento Interno da Câmara ou do Senado? Não pode. Isto é matéria de decreto legislativo e de resolução. Aliás, aqui faço um parêntese: imaginem os senhores o que significa o trancamento da pauta. Se hoje estourasse um conflito entre o Brasil e um outro país, e o Presidente mandasse uma mensagem para declarar a guerra, nós não poderíamos expedir o decreto legislativo, porque a pauta está trancada até maio. Então, nós mandaríamos avisar: só a partir do dia 15 ou 20 de maio nós vamos poder apreciar esse decreto legislativo. Não é?
Então, em face dessas circunstâncias, a interpretação que se dá a essa expressão ‘todas as deliberações legislativas’ são todas as deliberações legislativas ordinárias. Apenas as leis ordinárias é que não podem trancar a pauta. E ademais disso, mesmo no tocante às leis ordinárias, algumas delas estão excepcionadas. O art. 62, no inciso I, ao tratar das leis ordinárias que não podem ser objeto de medida provisória, estabelece as leis ordinárias sobre nacionalidade, cidadania e outros tantos temas que estão elencados no art. 62, inciso I. Então, nestas matérias também, digo eu, não há trancamento da pauta.
Esta interpretação, como V. Exas. percebem, é uma interpretação do sistema constitucional. O sistema constitucional nos indica isso, sob pena de termos que dizer o seguinte: (...) a Constituinte de 1988 não produziu o Estado Democrático de Direito; a Constituinte de 1988 não produziu a igualdade entre os órgãos do Poder. A Constituinte de 1988 produziu um sistema de separação de Poderes, em que o Poder Executivo é mais relevante, é maior, politicamente, do que o Legislativo, tanto é maior que basta um gesto excepcional de natureza legislativa para paralisar as atividades do Poder Legislativo. Poderíamos até exagerar e dizer: na verdade o que se quis foi apenar o Poder Legislativo. Ou seja, se o Legislativo não examinou essa medida provisória, que nasceu do sacrossanto Poder Executivo, o Legislativo paralisa as suas atividades e passa naturalmente a ser chicoteado pela opinião pública.
Por isso que, ao dar esta interpretação, o que quero significar é que as medidas provisórias evidentemente continuarão na pauta das sessões ordinárias, e continuarão trancando a pauta das sessões ordinárias, não trancarão a pauta das sessões extraordinárias (...).” (grifei)

A LEGITIMIDADE ATIVA DOS IMPETRANTES EM FACE DE SUA CONDIÇÃO DE MEMBROS DO CONGRESSO NACIONAL.

Sendo esse o contexto, examino, inicialmente, questão pertinente à legitimidade ativa dos ilustres Deputados Federais impetrantes do presente mandado de segurança.
E, ao fazê-lo, reconheço, na linha do magistério jurisprudencial desta Suprema Corte (MS 23.334/RJ, Rel. Min. CELSO DE MELLO, v.g.), que os membros do Congresso Nacional dispõem de legitimidade ativa “ad causam” para provocar a instauração do controle jurisdicional sobre o processo de formação das leis e das emendas à Constituição, assistindo-lhes, sob tal perspectiva, irrecusável direito subjetivo de impedir que a elaboração dos atos normativos, pelo Poder Legislativo, incida em desvios inconstitucionais.
É por essa razão que o Supremo Tribunal Federal tem reiteradamente proclamado, em favor dos congressistas – e apenas destes -, o reconhecimento desse direito público subjetivo à correta elaboração das emendas à Constituição, das leis e das demais espécies normativas referidas no art. 59 da Constituição:

“(...) O processo de formação das leis ou de elaboração de emendas à Constituição revela-se suscetível de controle incidental ou difuso pelo Poder Judiciário, sempre que, havendo possibilidade de lesão à ordem jurídico-constitucional, a impugnação vier a ser suscitada por membro do próprio Congresso Nacional, pois, nesse domínio, somente ao parlamentar - que dispõe do direito público subjetivo à correta observância das cláusulas que compõem o devido processo legislativo - assiste legitimidade ativa ad causam para provocar a fiscalização jurisdicional. (...).”
(MS 23.565/DF, Rel. Min. CELSO DE MELLO)

Não se pode ignorar que a estrita observância das normas constitucionais condiciona a própria validade dos atos normativos editados e/ou examinados pelo Poder Legislativo (CARL SCHMITT, “Teoria de La Constitución”, p. 166, 1934; PAOLO BISCARETTI DI RUFFIA, “Diritto Costituzionale”, vol. I/433-434, 1949; JULIEN LAFERRIÈRE, “Manuel de Droit Constitutionnel”, p. 330, 1947; A. ESMEIN, “Elements de Droit Constitutionnel Français et Comparé”, vol. I/643, 1927; SERIO GALEOTTI, “Contributo alla Teoria del Procedimento Legislativo”, p. 241). Desse modo, torna-se possível, em princípio, a fiscalização jurisdicional do processo de criação e de formação dos atos normativos, desde que - instaurada para viabilizar, “incidenter tantum”, o exame da compatibilidade das proposições com o texto da Constituição da República - venha a ser iniciada por provocação formal de qualquer dos integrantes das Casas legislativas.
Bem por isso, o Supremo Tribunal Federal, na análise dessa específica questão, consagrou orientação jurisprudencial que reconhece a possibilidade do controle incidental de constitucionalidade das proposições legislativas, desde que instaurado por iniciativa de membros do órgão parlamentar perante o qual se acham em curso os projetos de lei, as propostas de emenda à Constituição ou as medidas provisórias, p. ex..
A possibilidade extraordinária dessa intervenção jurisdicional, ainda que no próprio momento de produção das normas pelo Congresso Nacional, tem por finalidade assegurar, ao parlamentar (e a este, apenas), o direito público subjetivo - que lhe é inerente (RTJ 139/783) - de ver elaborados, pelo Legislativo, atos estatais compatíveis com o texto constitucional, garantindo-se, desse modo, àqueles que participam do processo legislativo (mas sempre no âmbito da Casa legislativa a que pertence o congressista impetrante), a certeza de observância da efetiva supremacia da Constituição, respeitados, necessariamente, no que se refere à extensão do controle judicial, os aspectos discricionários concernentes às questões políticas e aos atos “interna corporis” (RTJ 102/27 - RTJ 112/598 - RTJ 112/1023).
Titulares do poder de agir em sede jurisdicional, portanto, tratando-se de controvérsia constitucional instaurada ainda no momento formativo do projeto de lei (inclusive do projeto de lei de conversão) ou da proposta de emenda à Constituição, hão de ser os próprios membros do Congresso Nacional, a quem se reconhece, como líquido e certo, o direito público subjetivo à correta observância da disciplina jurídica imposta pela Carta Política em sede de elaboração das espécies normativas. O parlamentar, fundado na sua condição de co-partícipe do procedimento de formação das normas estatais, dispõe, por tal razão, da prerrogativa irrecusável de impugnar, em juízo, o eventual descumprimento, pela Casa legislativa, das cláusulas constitucionais que lhe condicionam, no domínio material ou no plano formal, a atividade de positivação dos atos normativos.

POSSIBILIDADE DE CONTROLE JURISDICIONAL DA DELIBERAÇÃO PARLAMENTAR QUESTIONADA, POR OCORRENTE SITUAÇÃO CONFIGURADORA DE LITÍGIO CONSTITUCIONAL.
Reconhecida, assim, a legitimidade dos ora impetrantes para agir na presente sede mandamental, passo a examinar a admissibilidade, no caso, desta ação de mandado de segurança, por entender que a decisão ora impugnada não se qualifica como ato “interna corporis”.
Tenho para mim, em juízo de sumária cognição, que a presente causa revela-se suscetível de conhecimento por esta Suprema Corte, em face da existência, na espécie, de litígio constitucional – instaurado entre os ora impetrantes, em sua condição de membros do Congresso Nacional, e o Senhor Presidente da Câmara dos Deputados – referente à interpretação do § 6º do art. 62 da Constituição Federal, acrescido pela EC nº 32/2001.
Esse particular aspecto da controvérsia afasta o caráter “interna corporis” do procedimento em questão, legitimando-se, desse modo, tal como tem sido reconhecido pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (RTJ 173/805-810, 806 - RTJ 175/253 - RTJ 176/718, v.g.), o exercício, por esta Suprema Corte, da jurisdição que lhe é inerente, em razão da natureza jurídico-constitucional do litígio em causa.
Vê-se, portanto, que a existência de controvérsia jurídica impregnada de relevo constitucional legitima o exercício, por esta Suprema Corte, de sua atividade de controle, que se revela ínsita ao âmbito de competência que a própria Carta Política lhe outorgou.
Isso significa reconhecer, considerados os fundamentos que dão suporte a esta impetração, que a prática do “judicial review” - ao contrário do que muitos erroneamente supõem e afirmam – não pode ser considerada um gesto de indevida interferência jurisdicional na esfera orgânica do Poder Legislativo.
É que a jurisdição constitucional qualifica-se como importante fator de contenção de eventuais excessos, abusos ou omissões alegadamente transgressores do texto da Constituição da República, não importando a condição institucional que ostente o órgão estatal – por mais elevada que seja sua posição na estrutura institucional do Estado - de que emanem tais condutas.
Não custa rememorar, neste ponto, que tal entendimento – plenamente legitimado pelos princípios que informam o Estado Democrático de Direito e que regem, em nosso sistema institucional, as relações entre os Poderes da República – nada mais representa senão um expressivo reflexo histórico da prática jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal (RTJ 142/88-89 - RTJ 167/792-793 - RTJ 175/253 - RTJ 176/718, v.g.).
Essa visão é também compartilhada pelo magistério da doutrina (PEDRO LESSA, “Do Poder Judiciário”, p. 65/66, 1915, Livraria Francisco Alves; RUI BARBOSA, “Obras Completas de Rui Barbosa”, vol. XLI, tomo III, p. 255/261, Fundação Casa de Rui Barbosa; CASTRO NUNES, “Do Mandado de Segurança”, p. 223, item n. 103, 5ª ed., 1956, Forense; PONTES DE MIRANDA, “Comentários à Constituição de 1967 com a Emenda n. 1, de 1969”, tomo III/644, 3ª ed., 1987, Forense; JOSÉ ELAERES MARQUES TEIXEIRA, “A Doutrina das Questões Políticas no Supremo Tribunal Federal”, 2005, Fabris Editor; DERLY BARRETO E SILVA FILHO, “Controle dos Atos Parlamentares pelo Poder Judiciário”, 2003, Malheiros; OSCAR VILHENA VIEIRA, “Supremo Tribunal Federal: Jurisprudência Política”, 2ª ed., 2002, Malheiros, v.g.), cuja orientação, no tema, tem sempre ressaltado, na linha de diversas decisões desta Corte, que “O Poder Judiciário, quando intervém para assegurar as franquias constitucionais e para garantir a integridade e a supremacia da Constituição, desempenha, de maneira plenamente legítima, as atribuições que lhe conferiu a própria Carta da República” (RTJ 173/806, Rel. Min. CELSO DE MELLO).
Entendo cognoscível, desse modo, salvo melhor juízo, o presente mandado de segurança, eis que configurada a existência, na espécie, de litígio de índole constitucional.
Superadas as questões prévias que venho de referir, passo a apreciar a postulação cautelar formulada pelos ilustres impetrantes.

A COMPETÊNCIA EXTRAORDINÁRIA DE EDITAR MEDIDAS PROVISÓRIAS NÃO PODE LEGITIMAR PRÁTICAS DE CESARISMO GOVERNAMENTAL NEM INIBIR O EXERCÍCIO, PELO CONGRESSO NACIONAL, DE SUA FUNÇÃO PRIMÁRIA DE LEGISLAR.
Quero registrar, desde logo, uma vez mais, a minha extrema preocupação – que já externara, em 1990, quando do julgamento da ADI 293-MC/DF, de que fui Relator - com o excesso de medidas provisórias que os sucessivos Presidentes da República têm editado, transformando a prática extraordinária dessa competência normativa primária em exercício ordinário do poder de legislar, com grave comprometimento do postulado constitucional da separação de poderes.
O exame da presente controvérsia mandamental suscita reflexão em torno de matéria impregnada do mais alto relevo jurídico, pois está em debate, neste processo, para além da definição do alcance de uma regra de caráter procedimental (CF, art. 62, § 6º), a própria integridade do sistema de poderes, notadamente o exercício, pelo Congresso Nacional, da função primária que lhe foi constitucionalmente atribuída: a função de legislar.
Ao julgar a ADI 2.213-MC/DF, de que sou Relator, salientei, então, a propósito da anômala situação institucional que resulta do exercício compulsivo do poder (extraordinário) de editar medidas provisórias, que o postulado da separação de poderes, que impõe o convívio harmonioso entre os órgãos da soberania nacional, atua, no contexto da organização estatal, como um expressivo meio de contenção dos excessos, que, praticados por qualquer dos poderes, culminam por submeter os demais à vontade hegemônica de um deles apenas.
A decisão ora impugnada nesta sede mandamental, considerados os fundamentos que lhe dão suporte legitimador, reflete, aparentemente, a justa preocupação da autoridade apontada como coatora – que associa, à sua condição de político ilustre, o perfil de constitucionalista eminente – com o processo de progressivo (e perigoso) esvaziamento das funções legislativas, que devem residir, primariamente, como típica função da instituição parlamentar, no Congresso Nacional (MICHEL TEMER, “Elementos de Direito Constitucional”, p. 133, item n. 1, 22ª ed./2ª tir., 2008, Malheiros), em ordem a neutralizar ensaios de centralização orgânica capazes de submeter, ilegitimamente, o Parlamento à vontade unipessoal do Presidente da República, cuja hegemonia no processo legislativo tende, cada vez mais, a inibir o poder de agenda do Legislativo, degradando-o, enquanto instituição essencial ao regime democrático, à condição de aparelho estatal inteiramente subordinado aos desígnios do Executivo, precisamente em decorrência da prática imoderada do poder de editar medidas provisórias.
Na realidade, a deliberação ora questionada busca reequilibrar as relações institucionais entre a Presidência da República e o Congresso Nacional, fazendo-o mediante interpretação que destaca o caráter fundamental que assume, em nossa organização política, o princípio da divisão funcional do poder, cuja essencialidade - ressaltada por ilustres doutrinadores (JOSÉ ANTÔNIO PIMENTA BUENO, “Direito Público Brasileiro e Análise da Constituição do Império”, p. 32/33, item ns. 27/28, 1958, reedição do Ministério da Justiça, Rio de Janeiro; MIGUEL REALE, “Figuras da Inteligência Brasileira”, p. 45/50, 2ª ed., 1994, Siciliano; CÁRMEN LÚCIA ANTUNES ROCHA, “Medidas Provisórias e Princípio da Separação de Poderes”, in “Direito Contemporâneo/Estudos em homenagem a Oscar Dias Corrêa”, p. 44/69, 2001, Forense Universitária; JOHN LOCKE, “Segundo Tratado sobre o Governo”, p. 89/92, itens ns. 141/144, 1963, Ibrasa; JAMES MADISON, “O Federalista”, p. 394/399 e 401/405, 401, arts. ns. 47 e 48, 1984, Editora UnB, v.g.) – foi expressamente destacada pelo eminente Senhor Presidente da Câmara dos Deputados, que acentuou as gravíssimas conseqüências que necessariamente derivam da transgressão a esse postulado básico que rege o modelo político-institucional vigente em nosso País (fls. 48):

“Esta interpretação (...) é uma interpretação do sistema constitucional. O sistema constitucional nos indica isso, sob pena de termos que dizer o seguinte: (...) a Constituinte de 1988 não produziu o Estado Democrático de Direito; a Constituinte de 1988 não produziu a igualdade entre os órgãos do Poder. A Constituinte de 1988 produziu um sistema de separação de Poderes, em que o Poder Executivo é mais relevante, é maior, politicamente, do que o Legislativo.” (grifei)

As razões expostas pelo Senhor Presidente da Câmara dos Deputados põem em evidência um fato que não podemos ignorar: o de que a crescente apropriação institucional do poder de legislar, por parte dos sucessivos Presidentes da República, tem causado profundas distorções que se projetam no plano das relações políticas entre os Poderes Executivo e Legislativo.
Os dados pertinentes ao número de medidas provisórias editadas e reeditadas pelos vários Presidentes da República, desde 05 de outubro de 1988 até a presente data, evidenciam que o exercício compulsivo da competência extraordinária de editar medida provisória culminou por introduzir, no processo institucional brasileiro, verdadeiro cesarismo governamental em matéria legislativa, provocando graves distorções no modelo político e gerando sérias disfunções comprometedoras da integridade do princípio constitucional da separação de poderes.
Desse modo, e mesmo que o exercício (sempre excepcional) da atividade normativa primária pelo Poder Executivo possa justificar-se em situações absolutamente emergenciais, abrandando, em tais hipóteses, “o monopólio legislativo dos Parlamentos” (RAUL MACHADO HORTA, “Medidas Provisórias”, “in” Revista de Informação Legislativa, vol. 107/5), ainda assim revelar-se-á profundamente inquietante - na perspectiva da experiência institucional brasileira - o progressivo controle hegemônico do aparelho de Estado, decorrente da superposição da vontade unipessoal do Presidente da República, em função do exercício imoderado da competência extraordinária que lhe conferiu o art. 62 da Constituição.
A FÓRMULA INTERPRETATIVA ADOTADA PELO PRESIDENTE DA CÂMARA DOS DEPUTADOS: UMA REAÇÃO LEGÍTIMA AO CONTROLE HEGEMÔNICO, PELO PRESIDENTE DA REPÚBLICA, DO PODER DE AGENDA DO CONGRESSO NACIONAL?
Todas essas circunstâncias e fatores – que tão perigosamente minimizam a importância político-institucional do Poder Legislativo - parecem haver justificado a reação do Senhor Presidente da Câmara dos Deputados consubstanciada na decisão em causa.
Parece-me, ao menos em juízo de estrita delibação, considerada a ratio subjacente à decisão ora impugnada, que a solução interpretativa dada pelo Senhor Presidente da Câmara dos Deputados encerraria uma resposta jurídica qualitativamente superior àquela que busca sustentar – e, mais grave, preservar – virtual interdição das funções legislativas do Congresso Nacional.
Se é certo, de um lado, que o diálogo institucional entre o Poder Executivo e o Poder Legislativo há de ser desenvolvido com observância dos marcos regulatórios que a própria Constituição da República define, não é menos exato, de outro, que a Lei Fundamental há de ser interpretada de modo compatível com o postulado da separação de poderes, em ordem a evitar exegeses que estabeleçam a preponderância institucional de um dos Poderes do Estado sobre os demais, notadamente se, de tal interpretação, puder resultar o comprometimento (ou, até mesmo, a esterilização) do normal exercício, pelos órgãos da soberania nacional, das funções típicas que lhes foram outorgadas.
Na realidade, a expansão do poder presidencial, em tema de desempenho da função (anômala) de legislar, além de viabilizar a possibilidade de uma preocupante ingerência do Chefe do Poder Executivo da União no tratamento unilateral de questões, que, historicamente, sempre pertenceram à esfera de atuação institucional dos corpos legislativos, introduz fator de desequilíbrio sistêmico que atinge, afeta e desconsidera a essência da ordem democrática, cujos fundamentos - apoiados em razões de garantia política e de segurança jurídica dos cidadãos - conferem justificação teórica ao princípio da reserva de Parlamento e ao postulado da separação de poderes.
Interpretações regalistas da Constituição - que visem a produzir exegeses servilmente ajustadas à visão e à conveniência exclusivas dos governantes e de estamentos dominantes no aparelho social - representariam clara subversão da vontade inscrita no texto de nossa Lei Fundamental e ensejariam, a partir da temerária aceitação da soberania interpretativa manifestada pelos dirigentes do Estado, a deformação do sistema de discriminação de poderes fixado, de modo legítimo e incontrastável, pela Assembléia Nacional Constituinte.
A interpretação dada pelo Senhor Presidente da Câmara dos Deputados ao § 6º do art. 62 da Constituição da República, ao contrário, apoiada em estrita construção de ordem jurídica, cujos fundamentos repousam no postulado da separação de poderes, teria, aparentemente, a virtude de fazer instaurar, no âmbito da Câmara dos Deputados, verdadeira práxis libertadora do desempenho, por essa Casa do Congresso Nacional, da função primária que, histórica e institucionalmente, sempre lhe pertenceu: a função de legislar.
É por isso que o exame das razões expostas pelo Senhor Presidente da Câmara dos Deputados, na decisão em causa, leva-me a ter por descaracterizada, ao menos em juízo de sumária cognição, a plausibilidade jurídica da pretensão mandamental ora deduzida nesta sede processual.
A deliberação emanada do Senhor Presidente da Câmara dos Deputados parece representar um sinal muito expressivo de reação institucional do Parlamento a uma situação de fato que se vem perpetuando no tempo e que culmina por frustrar o exercício, pelas Casas do Congresso Nacional, da função típica que lhes é inerente, qual seja, a função de legislar.
A construção jurídica formulada pelo Senhor Presidente da Câmara dos Deputados, além de propiciar o regular desenvolvimento dos trabalhos legislativos no Congresso Nacional, parece demonstrar reverência ao texto constitucional, pois - reconhecendo a subsistência do bloqueio da pauta daquela Casa legislativa quanto às proposições normativas que veiculem matéria passível de regulação por medidas provisórias (não compreendidas, unicamente, aquelas abrangidas pela cláusula de pré-exclusão inscrita no art. 62, § 1º, da Constituição, na redação dada pela EC nº 32/2001) – preserva, íntegro, o poder ordinário de legislar atribuído ao Parlamento.
Mais do que isso, a decisão em causa teria a virtude de devolver, à Câmara dos Deputados, o poder de agenda, que representa prerrogativa institucional das mais relevantes, capaz de permitir, a essa Casa do Parlamento brasileiro, o poder de selecionar e de apreciar, de modo inteiramente autônomo, as matérias que considere revestidas de importância política, social, cultural, econômica e jurídica para a vida do País, o que ensejará – na visão e na perspectiva do Poder Legislativo (e não nas do Presidente da República) - a formulação e a concretização, pela instância parlamentar, de uma pauta temática própria, sem prejuízo da observância do bloqueio procedimental a que se refere o § 6º do art. 62 da Constituição, considerada, quanto a essa obstrução ritual, a interpretação que lhe deu o Senhor Presidente da Câmara dos Deputados.
Sendo assim, em face das razões expostas, e sem prejuízo de ulterior reexame da controvérsia em questão, indefiro o pedido de medida cautelar.
2. Solicitem-se informações ao eminente Senhor Presidente da Câmara dos Deputados, autoridade ora apontada como coatora, encaminhando-se-lhe cópia da presente decisão.
Observo que a peça processual produzida a fls. 36/41 pelo Senhor Presidente da Câmara dos Deputados refere-se, unicamente, à sua explícita oposição ao deferimento da medida cautelar.
A ilustre autoridade apontada como coatora deverá, ainda, juntamente com as informações, identificar, discriminando-as, as medidas provisórias, que, ora em tramitação na Câmara dos Deputados, acham-se na situação a que se refere o § 6º do art. 62 da Constituição.

Publique-se.

Brasília, 27 de março de 2009.

Ministro CELSO DE MELLO
Relator

*decisão publicada no DJE de 1º.4.2009

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