quarta-feira, 24 de junho de 2009

Supremocracia: vícios e virtudes republicanas

Atualmente, o Supremo Tribunal Federal tem tomado grande espaço na mídia nacional, seja pelos julgamentos de casos celebres, como da ADPF54 (aborto de fetos anencefalos), ADPF 130 (Lei de Imprenssa), ou mesmo a "discussão" entre os ministros Gilmar Mendes e Joaquim Barbosa. Isso tem levado a população a voltar seus olhos para a Corte Suprema, a qual tem como função principal ser o Guarda da Constituição.

Paralelamente ao quadro do Supremo Tribunal Federal, temos visto o quadro "nefasto" po que passa tanto o Poder Executivo e o Poder Legislativo, com denúncias de corrupção, dentre outros atos que maculam o Estado Brasileiro. Diante toda essa "bagunça" por que passa o Executivo e o Legislativo, pouca coisa tem sido feita por estes poderes, principalmente, quanto a efetivação dos direitos fundamentais dos cidadãos brasileiros, como é o caso de execução de obras de infra-estrutura básica (Hospitais, escolas, ect) ou a elaboração de leis que efetivem e promovam os direitos (casos de omissão legislativa - direito de greve). Isso tem levado o poder judiciário, em especial, o Supremo Tribunal Federal a tomar as vezes dos demais poderes do Estado, para que possa promover aos cidadãos brasileiros os seus direitos e garantias fundamentais.

A atuação hoje demonstrada pelo Supremo Tribunal Federal na efetivação dos direitos fundamentais, que em muito dos casos, para alguns, tem extrapolado suas competências, demonstra o caminho, não distante, da transformação do Supremo Tribunal Federal em uma verdadeira Corte Constitucional aos moldes da Europa Continental.

Quanto ao tema deixo aqui um artigo ido prof. Oscar Vilhena*, que debate a atual atuação do STF no Estado Brasileiro:

Supremocracia: vícios e virtudes republicanas

Difícil pensar um tema relevante em nossa vida política que não venha a exigir, mais dia menos dia, a intervenção do STF: troca-troca de partidos, cláusula de barreira partidária, julgamento de altas autoridades (vide Collor e mensalão), limites de atuação das CPIs, do Ministério Público e do Conselho Nacional de Justiça, sessões secretas do Senado, direito de greve dos servidores públicos, guerra fiscal, aposentadorias de governadores, reforma administrativa, previdenciária e do próprio Judiciário, pesquisa com células-tronco, quotas nas universidades, desarmamento, distribuição de medicamentos, aborto, direito adquirido - sem falar em milhares de habeas corpus, como o concedido para Salvatore Cacciola. Tudo parece exigir uma última palavra do STF. Se por um lado isto demonstra a grande fortaleza desta instituição, por outro é sintoma de uma forte crise, para não dizer degradação, de nosso sistema democrático, que hoje depende deste novo "Poder Moderador" para funcionar.

Múltiplas são as razões para esta proeminência do STF em nosso sistema político. A primeira delas decorre da própria ambição da Constituição de 1988 que, corretamente desconfiada do legislador, sobre tudo legislou. O efeito colateral do compromisso maximizador assumido pelo texto de 1988, no entanto, foi a criação de uma enorme esfera de tensão constitucional. A equação é simples: se tudo é matéria constitucional, o campo de liberdade dado ao corpo político é muito pequeno. Assim, qualquer movimento mais brusco gera um incidente de inconstitucionalidade e, conseqüentemente, a judicialização de uma contenda política.

A segunda razão está ligada à própria arquitetura do STF. A Constituição de 1988 conferiu ao STF amplos poderes de guardião constitucional. Ao Tribunal foram atribuídas funções que na maioria das democracias contemporâneas estão divididas em pelo menos três tipos de instituições: tribunais constitucionais, foros judiciais especializados e cortes de última instância.

Na condição de tribunal constitucional, o STF tem por obrigação julgar ações diretas voltadas a verificar a constitucionalidade de leis e atos normativos produzidos pela esfera federal e estadual, assim como apreciar a omissão dos poderes Legislativo e Executivo na implementação de programas ou diretrizes constitucionais. Dada a total falta de cerimônia de nossos políticos em agredir a Constituição, o STF tem sido obrigado a declarar inconstitucionais cerca de três quartos de todas leis a ele submetidas. Mais recentemente tem substituído o legislador omisso, criando novas regras para o nosso sistema político. Isto demonstra a enorme fragilidade das instituições de representação política, o que certamente não é um bom sinal.

É ilusão achar que as virtudes do STF podem suprir sempre os vícios da participação política, o que não é sequer desejável.

No exercício da função de foro especializado, o Tribunal foi colocado em uma delicada posição. Em primeiro lugar cumpre-lhe julgar criminalmente altas autoridades. Em função da elevada taxa de criminalidade no escalão superior de nossa triste República, o Supremo passou a agir como juízo de primeira instância, como vimos no caso da recém-aceitação da denúncia contra os mensaleiros. Só para ter uma dimensão do problema, há mais de 250 denúncias contra políticos aguardando manifestação do Supremo. O Tribunal não está equipado para isto e mesmo que estivesse, seu escasso tempo seria consumido em intermináveis instruções criminais, desviando-o de suas responsabilidades essenciais. A segunda pedra no caminho do STF é ter que apreciar, às vezes em caráter imediato, como ocorreu no caso Renan Calheiros, atos secundários do parlamento. Desconheço qualquer outro tribunal supremo do mundo que faça plantão judiciário para solucionar quizílias que os parlamentares não são capazes de resolver por si mesmos, de maneira racional e compatível com a Constituição.

Por fim, o STF serve como última instância judicial, revisando centenas de milhares de casos resolvidos pelos tribunais inferiores, todos os anos. De 1988 para cá, foram mais de um milhão de recursos extraordinários e agravos de instrumento apreciados por 11 juízes, isto sem falar nos milhares de habeas corpus, pedidos de extradição e outros processos que chegam ao protocolo do Tribunal todos os dias. Além de desumano com os ministros, é absolutamente irracional fazer com que milhões de jurisdicionados fiquem aguardando uma decisão do Tribunal, enquanto seus devedores se beneficiam da demora na solução destes casos. Desnecessário dizer que o maior beneficiário deste sistema irracional é o próprio Estado brasileiro. Neste sentido, a argüição de repercussão geral e a própria súmula vinculante, se bem empregadas, podem contribuir para desanuviar o Tribunal.

A questão fundamental é saber até quando o STF poderá suportar esta enorme pressão decorrente da incapacidade de nosso sistema político de deliberar dentro de parâmetros legais e racionais. Como a função de interpretar a Constituição é em grande medida política, dada as ambigüidades e a alta carga de valores morais abrigada pelo texto constitucional, corre-se o risco de um processo de fadiga, que leve ao esgarçamento da preciosa autoridade do STF. Não há aqui nenhuma sugestão de que o Supremo deva abster-se num momento como este. Antes o contrário: é momento de resistir. Mas certamente deve o Tribunal ser desonerado, no futuro, de inúmeras funções que podem ser absorvidas por outras instâncias judiciais. O fim do foro privilegiado, a transferência de competências recursais, a eliminação do varejo de liminares e habeas corpus, entre outras medidas, poderiam contribuir para preservar a autoridade do STF. É uma ilusão achar que as virtudes do STF possam suprir ilimitadamente os vícios da participação política. Ainda que isto fosse possível, seria desejável?

*Oscar Vilhena Vieira, professor de Direito Constitucional da Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas, São Paulo, onde coordena o Programa de Pós- Graduação em Direito e Desenvolvimento; diretor jurídico da organização Conectas Direitos Humanos; mestre em direito pela Universidade de Columbia, Nova York, e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo; autor de "Direitos Fundamentais: uma da jurisprudência do STF", Malheiros editores, 2006.