terça-feira, 27 de novembro de 2012

Fidelidade partidária é assunto de interesse público


No julgamento conjunto dos Mandados de Segurança 22.602, 22.603 e 22.604, o Supremo Tribunal Federal decidiu que a regra de fidelidade partidária é “um corolário jurídico lógico e necessário do sistema constitucional positivado” (MS 26.604, rel. Min. Cármen Lúcia). Lastreado nesse entendimento, o Tribunal Superior Eleitoral editou a Resolução 22.610 de 2007, que disciplina o processo de perda de cargo eletivo por desfiliação sem justa causa. Assim, o mandatário infiel, que é eleito graças ao partido e com verbas públicas do fundo partidário e propaganda eleitoral gratuita, perde o mandato caso não prove a existência de hipóteses especialíssimas de justa causa. A saber: I) incorporação ou fusão do partido; II) criação de novo partido; III) mudança substancial ou desvio reiterado do programa partidário; e IV) grave discriminação pessoal.
Essas decisões foram um passo crucial para a efetivação do ideal constitucional de uma democracia verdadeiramente representativa, na qual o voto e a confiança do eleitor não sejam perdidos em meio ao troca-troca fisiológico. Hoje, contudo, esses avanços estão ameaçados por um recuo precoce da Justiça Eleitoral. Há a proposta de alteração da Resolução TSE 22.610 (Processo administrativo 1028-87/DF, Rel. Original Min. Arnaldo Versiani, cujo mandato recentemente se findou, atualmente com pedido de vista da ministra Luciana Lóssio), que pretende excluir a competência da Procuradoria Regional Eleitoral, da Procuradoria Geral Eleitoral e de terceiros interessados para a propositura de ações de perda de mandato dos políticos “infiéis”.
Caso a proposta seja aprovada, a fidelidade partidária passaria de “corolário” do sistema constitucional, regra necessária à soberania popular e à probidade do sistema político, a ser mera faculdade dos partidos, assim transformados em detentores absolutos do mandato popular, para dele dispor ao sabor das conveniências. Ficaria mais evidente que, apesar do uso de verbas públicas (via Fundo Partidário) com as quais os infiéis foram eleitos, os partidos podem tratar os mandatos de modo privado, sem a fiscalização da Procuradoria Regional Eleitoral ou da Procuradoria Geral Eleitoral.
Contudo, os entendimentos do STF e do TSE estabeleceram que a fidelidade partidária não é meramente do candidato ao partido político, senão do partido político ao povo. O fundamento essencial da decisão do nosso Tribunal Constitucional foi o de que, no sistema político brasileiro, o mandato representativo é uma delegação do poder político feita pelo povo ao partido, não ao candidato. Assim, como deixou claro a ministra Cármen Lúcia, o mandato é do partido não porque o candidato tenha que se vincular ao partido. “É que o eleitor tem de fazê-lo impreterivelmente, não podendo escolher quem bem entender ou quem entender de lançar a sua candidatura sem vínculo partidário” (MS 26.604, rel. Min. Cármen Lúcia fls. 190). A ideia de que “o mandato é do partido” corresponde a outra ideia, mais fundamental, segundo a qual “o mandato é do povo, que o delega ao partido, ficando este obrigado ao povo”. Não é um assunto meramente privado, entre o mandatário eleito e seu partido de origem, podendo este último livremente dispor.
Outro motivo para considerar a fidelidade partidária assunto de interesse público diz respeito ao financiamento hoje misto das campanhas: o eleito se elegeu usando o partido (não há candidatura avulsa no Brasil, sem vínculo partidário), verbas públicas que são repartidas aos partidos, como são os casos das verbas do Fundo Partidário e ainda o tempo da propaganda eleitoral gratuita.
Em matéria de interesse público e indisponível — como a da fidelidade partidária —, a legitimidade do Ministério Público é patente. Como se sabe, a este órgão incumbe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis (art. 127, caput, da Constituição Federal). Além disso, a Lei Complementar 75/93 garante a atuação ministerial em todas as fases e graus de jurisdição do processo eleitoral, e o Código de Processo Civil, em seu artigo 82, inciso III, estabelece a intervenção do MP em todas as ações que tratem de matéria de interesse público. O Tribunal Superior Eleitoral já consolidou o entendimento de que esse arcabouço institucional é plenamente aplicável ao Ministério Público Eleitoral. Julgado recente, de abril deste ano, evidencia essa posição. Na ocasião, foi reformado acórdão do Tribunal Regional Eleitoral de São Paulo que negou legitimidade à Procuradoria Regional Eleitoral para propor ações pelo desvirtuamento de propaganda partidária gratuita. Afirmou a relatora no TSE que “Assim, embora presente o interesse de natureza privada (interna corporis) das agremiações partidárias especificamente na propaganda partidária há prevalência do interesse público” (Respe 598.132/SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, decisão monocrática em 26/04/12).
Ademais, ainda que sejam entidades de direito privado, os partidos políticos recebem recursos públicos do fundo partidário e devem prestar contas à Justiça Eleitoral, estando seu funcionamento parlamentar vinculado à lei (artigo 17 da Constituição Federal). Permitir que eles disponham livremente do mandato eletivo cuja titularidade detém, ensejando indesejáveis trocas de favores entre partidos e candidatos a depender das conveniências políticas do momento, seria, nas palavras da ministra Cármen Lúcia, “fazer tábula rasa dos princípios, como o da soberania popular, o da representação mediante a imprescindível e decisiva participação dos partidos políticos, dentre outros, e das regras que ordenam a matéria aqui cuidada” (MS 26.604, fls. 188). Por esses motivos que a redação originária da Resolução 22.610/07 sobre a legitimidade do MP deve ser mantida.
Por fim, um defensor da alteração proposta poderia, mesmo após os argumentos acima defendidos, afirmar que os partidos vêm cumprindo sua responsabilidade para com o eleitor e fazendo valer, de fato, sua titularidade sobre os mandatos dos migrantes. Mas essa não seria uma descrição correta do que hoje ocorre. O fato de que um partido recém-criado tenha cogitado incluir em seu estatuto a garantia de que não buscaria o mandato de seus filiados que resolvessem aderir a outros partidos (trata-se aqui da noção de “janela de infidelidade”, ou de “partido trampolim”, como se vê na notícia “PSD oficializará ‘trampolim’ no estatuto”, jornal Folha de São Paulo, caderno Poder, 06/05/2011) é emblemático. A atual dinâmica dos atores políticos em torno da fidelidade partidária mostra que a regra da fidelidade nem sempre tem sido levada a sério.
Só neste ano, no estado de São Paulo, são 97 decisões de procedência em ações propostas pela Procuradoria Regional Eleitoral. Se considerarmos que a atribuição do Ministério Público surge somente após o prazo para o partido formular o pedido (que é de 30 dias após a desfiliação), fica evidente o desinteresse partidário em fazer valer a fidelidade. Caso a proposta de alteração da Resolução 22.610/07 já tivesse sido aprovada, teríamos em São Paulo 97 infiéis sem justa causa, eleitos com dinheiro público, a desmoralizar, com a devida vênia, o sistema político-partidário. Nos demais estados, os números também são significativos. Apenas para citar dois exemplos, na Bahia, foram 20 ações da Procuradoria procedentes, em Sergipe, 33. As Procuradorias Regionais Eleitorais de todo o Brasil demonstram o acerto da redação atual da Res. 22.610/07.
À guisa de conclusão, defendo que a fidelidade partidária não é uma concessão aos partidos políticos. É uma regra do sistema político que visa aproximá-lo cada vez mais do ideal de plena representação partidária dos diversos interesses de uma sociedade plural. Permitir que apenas os partidos possam fazer valer a regra é como dizer que os partidos são detentores dos mandatos políticos caso queiram que assim seja. Ora, mandatos políticos não são disponíveis. Ou o sistema representativo é partidário, ou não. Se é, então os mandatos, mais que direitos, são deveres a serem imputados aos partidos, e a fidelidade partidária é regra a ser zelada por todos, em especial pelo Ministério Público que tem o dever constitucional — artigo 127 da CF — de assegurar o interesse público.
Autor: André de Carvalho Ramos é procurador regional eleitoral do estado de São Paulo, professor de Direito Internacional e Direitos Humanos da Faculdade de Direito da USP, doutor e livre-docente em Direito Internacional.

Fonte: Conjur

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