quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

Decisão sobre extradição deve cumprir tratado

O Ministro da Justiça concedeu refúgio ao extraditando Cesare Battisti, a República da Itália impetrando Mandado de Segurança no Supremo Tribunal Federal contra esse ato. O Mandado de Segurança não foi conhecido, mas o relator da extradição propôs, em questão de ordem, o exame, de ofício, do ato, solução que prevaleceu por cinco votos a quatro. Posteriormente a extradição foi autorizada, também por cinco votos a quatro, suscitando-se debate a respeito da vinculação ou não, do presidente da República, por essa decisão do tribunal.

Por cinco votos a quatro concluiu-se que a decisão do tribunal não obriga o presidente da República a extraditar o extraditando. Quatro dos ministros do STF que votaram nesse sentido afirmaram que a decisão do presidente da República, no sentido de extraditar ou não extraditar o extraditando, seria discricionária. Votei pela sua não vinculação ao que decidira o tribunal quanto ao mérito da extradição, observando, no entanto, que essa decisão [decisão dele, presidente da República] não seria discricionária, devendo ser tomada “nos limites do direito convencional”, isto é, observados os termos do Tratado de Extradição celebrado entre o Brasil e a Itália, tratado aprovado pelo decreto 863/93.

Não obstante, a decisão [decisão do tribunal] a esse respeito foi proclamada como se o tribunal tivesse definido, por cinco a quatro, que a decisão do presidente da República seria discricionária. A República da Itália arguiu uma segunda questão de ordem, questionando esse meu voto. Esclareci então que votara afirmando que “o tribunal autoriza a extradição e a decisão quanto ao seu deferimento ou não deferimento — deferimento ou não deferimento da extradição — é do presidente da República, observadas a lei e o tratado”. Disso resultou nova proclamação do resultado do julgamento, então correta, no sentido, simplesmente, de que por cinco votos a quatro definiu-se que a decisão do tribunal quanto ao mérito da extradição não vincula o presidente da República.

Daí sobrevieram notícias equivocadas, inclusive — nutrida sei por quem — a de que eu teria alterado meu voto. Note-se que a circunstância de no contexto fazer-se uso do vocábulo decisão em três sentidos (decisão do tribunal quanto ao mérito da extradição, decisão do tribunal a respeito da vinculação do presidente da República pela sua decisão anterior e decisão do presidente da República a respeito da extradição ou não extradição do extraditando) efetivamente poderia confundir mesmo quem estivesse em boa fé.

Transcrevo, a seguir, meus votos quanto à vinculação ou não vinculação do presidente da República pela decisão do tribunal quanto ao mérito da extradição e na segunda questão de ordem. A leitura atenta e desapaixonada desses votos deixa-me bem com o futuro.

Voto sobre a vinculação ou não vinculação do presidente da República pela decisão do tribunal

1. Penso que a questão não deve ser colocada em termos de a decisão deste tribunal a respeito de pedido de extradição obrigar, ou não obrigar, o presidente da República.

Há de ser postulada no quadro do Tratado de Extradição celebrado entre o Brasil e a Itália, tratado aprovado pelo Decreto 863/93, que há de ser interpretado à luz da Constituição.

2. Ao Supremo Tribunal Federal cabe processar e julgar, originariamente, a extradição solicitada por Estado estrangeiro (art. 102, I, g da Constituição do Brasil).

Lê-se na ementa da Extradição 272, relator o ministro Victor Nunes Leal, o seguinte: “1) Extradição, a) o deferimento ou recusa da extradição é direito inerente à soberania. b) A efetivação, pelo governo, da entrega de extraditando, autorizada pelo Supremo Tribunal, depende do direito internacional convencional”.

No voto que então proferiu, o ministro Victor Nunes Leal observou: “Mesmo que o Tribunal consinta na extradição --- por ser regular o pedido ---, surge outro problema, que interessa particularmente ao Executivo: saber se ele está obrigado a efetivá-la. Parece-me que essa obrigação só existe nos limites do direito convencional, porque não há, como diz Mercier, ‘um direito internacional geral de extradição’”.

3. Tem-se bem claro, aí, que o Supremo Tribunal Federal autoriza, ou não, a extradição. Há de fazê-lo, para autorizar ou não autorizar a extradição, observadas as regras do tratado e as leis. Mas quem defere ou recusa a extradição é o presidente da República, a quem incumbe manter relações com Estados estrangeiros (art. 84, VII da Constituição), presentando a soberania nacional [veja-se os incisos XVIII, XIX e XX desse mesmo artigo 84] A “Parte requerida” é o Estado, no Brasil presentado pelo presidente da República. Quando não é assim o tratado refere, sempre, “autoridades judiciárias” (Artigos 1; 3.1,a; 7.2 e 7.5).

4. Daí que o presidente da República está ou não obrigado a deferir extradição autorizada pelo tribunal nos termos do Tratado.

Pode recusá-la em algumas hipóteses que, seguramente, fora de qualquer dúvida, não são examinadas, nem examináveis, pelo tribunal, as descritas na alínea f do seu Artigo 3.1. Tanto é assim que o Artigo 14.1 dispõe que a recusa da extradição pela Parte requerida --- e a “Parte requerida”, repito, é presentada pelo Presidente da República --- “mesmo parcial, deverá ser motivada”.

5. Pois esse Artigo 3.1, alínea f do tratado estabelece que a extradição não será concedida se a Parte requerida tiver razões ponderáveis para supor que sua situação [isto é, da pessoa reclamada] “possa ser agravada” — vale dizer, afetada — mercê de condição pessoal. A Parte requerida [isto é, o presidente da República] poderá, nessa hipótese, não conceder a extradição.

Aqui se trata de requisitos de caráter puramente subjetivos da Parte requerida, de conteúdo indeterminado, que não se pode contestar. Exatamente o que a doutrina chama de “conceito indeterminado”.

Nesses limites, nos termos do Tratado, o presidente da República deferirá, ou não, a extradição autorizada pelo tribunal, sem que com isso esteja a desafiar sua decisão.

Voto nesse sentido. O que obriga o presidente da República é o Tratado de Extradição celebrado entre o Brasil e a Itália, aprovado pelo Decreto 863/93. Retorno ao voto de Victor Nunes Leal: “Mesmo que o Tribunal consinta na extradição — por ser regular o pedido —,” a obrigação, do Executivo, de efetivá-la, “só existe nos limites do direito convencional”.

Voto na segunda questão de ordem

Votei, na derradeira sessão de julgamento da Extradição 1.085, no sentido de afirmar que a decisão do Supremo Tribunal Federal não obriga o presidente da República, ainda que vinculada pelo tratado.

Isso é claro, muito claro. Vale dizer, o tribunal autoriza a extradição e a decisão quanto ao seu deferimento ou não deferimento — deferimento ou não deferimento da extradição — é do presidente da República, observadas a lei e o tratado.

Não desejo, neste momento, abrir novamente debate a respeito da distinção entre discricionariedade e interpretação do direito, tema a respeito do qual escrevi, há mais de vinte anos, no Direito, conceitos e normas jurídicas[1], a ele retornando e nele insistindo a partir da primeira edição do meu O direito posto e o direito pressuposto[2]. Veja-se também meu Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do direito[3], desde a primeira edição, páginas 46-47.

Está muito claro, em meu voto, que a decisão do tribunal autoriza a extradição, cabendo ao presidente da República, observados os termos do tratado — isto é, interpretando-os —, deferi-la, ou não. Transcrevo o trecho final desse voto:

“Nesses limites, nos termos do Tratado, o presidente da República deferirá, ou não, a extradição autorizada pelo tribunal, sem que com isso esteja a desafiar sua decisão [decisão do tribunal].

Voto nesse sentido. O que obriga o presidente da República é o Tratado de Extradição celebrado entre o Brasil e a Itália, aprovado pelo Decreto 863/93. Retorno ao voto de Victor Nunes Leal: ‘Mesmo que o Tribunal consinta na extradição — por ser regular o pedido —,” a obrigação, do Executivo, de efetivá-la, “só existe nos limites do direito convencional’”.

Meu voto está alinhado com o entendimento dos ministros que afirmam que a decisão tribunal não obriga o presidente da República — os ministros Marco Aurélio, Joaquim Barbosa, Carlos Britto a Cármen Lúcia — mas não coincide com o entendimento, deles, de que o presidente da República exercite juízo de oportunidade e conveniência ao deferir, ou não deferir, a extradição. O ato desse deferimento ou não deferimento é, na dicção de Victor Nunes Leal, ato “nos limites do direito convencional’”. O voto não consubstancia nenhuma inovação no que penso.

Ele, o presidente — a quem incumbe manter relações com Estados estrangeiros (art. 84, VII da Constituição), presentando a soberania nacional [veja-se os incisos XVIII, XIX e XX desse mesmo artigo 84]; a “Parte requerida” é o Estado, no Brasil presentado pelo presidente da República — ele decidirá, neste ou naquele sentido, segundo a interpretação que der às regras do tratado, praticando então o ato que lhe incumbe. Ato a ser praticado “nos limites do direito convencional”. Não se trata, então, de ato discricionário, porém de ato regrado, ato vinculado ao que dispõe o tratado.


[1] Editora Revista dos Tribunais, São Paulo, 1988, págs. 75 e 177.

[2] Malheiros Editores, São Paulo, 1996.

[3] Malheiros Editores, São Paulo, 2002.

FONTE: CONJUR

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