O ministro aposentado do Supremo Tribunal Federal Carlos Velloso relembra em entrevista o advento das leis 9.868 e 9.882, a partir de 1999, dizendo que vieram em boa hora. Ele destaca que a doutrina das ações diretas de inconstitucionalidade foi construída por entendimentos jurisprudenciais do STF ao longo do tempo. E nota que hoje o Supremo Tribunal é muito mais aberto às postulações da sociedade, no controle concentrado da constitucionalidade. “Torço para que essa tendência continue”, afirma.
Confira a entrevista:
- Há 10 anos, em 1999, foram criadas as leis 9.868 e 9.882, que dispõem sobre o processo e julgamento das ADIs, ADCs e ADPFs. Como o senhor atuava no STF à época, quais as principais mudanças geradas com a criação dessas leis, tendo em vista que, antes disso, já havia ADIs e ADCs, mas não havia legislação específica?
Ministro Carlos Velloso – As Leis 9.868 e 9.882, de 1999, vieram em boa hora. É preciso reconhecer, entretanto, que muitas de suas disposições simplesmente consagram entendimentos jurisprudenciais do Supremo Tribunal, que, ao longo do tempo, construiu a doutrina das ações diretas de inconstitucionalidade. Essa doutrina começou a ser construída a partir da criação, pela Emenda Constitucional nº 16, de 1965, da representação de inconstitucionalidade, que poderia ser proposta apenas pelo procurador-geral da República. Não me lembro de inovação significativa por parte da lei que estabeleceu o processo das ADI e ADC, a não ser o estabelecido no art. 27 da Lei 9.868/99, de grande significação, que autoriza o Supremo Tribunal, ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos da declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento a ser fixado. Na Lei 9.882/99, o disposto no art. 11 repete o estabelecido no citado art. 27. Pode o Supremo, portanto, observadas as circunstâncias inscritas na lei – razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social – emprestar às decisões proferidas no controle concentrado efeitos “pro tempore” [em tempo certo]: “ex tunc” [efeito retroativo], “ex nunc” [com efeitos a partir da decisão] ou “pro futuro” [a partir de data futura]. Há quem sustente a inconstitucionalidade de tais dispositivos. De minha parte, considero tais dispositivos constitucionais. Até nos Estados Unidos, pátria da doutrina do ato inconstitucional nulo e írrito, tem-se admitido a relativização do princípio da retroação “ex tunc”, como aconteceu, por exemplo, no caso Likletter vs. Walker, em 1965. Nesse caso, a Suprema Corte reconheceu que a questão da prospectividade dos efeitos do “judicial review” nada mais seria do que uma prática constitucional, alterável pela jurisprudência. Há trabalhos doutrinários importantes de Sérgio Resende Barros, Gilmar Mendes e Carlos Roberto Siqueira Castro a respeito do tema, que devem ser lidos.
- A ADPF foi criada, entre outros motivos, para suprir a lacuna da ADI, que não pode ser aplicada a leis anteriores a 1988 nem contra atos municipais. Quais as vantagens que esse tipo de ação trouxe para a sociedade?
Ministro Carlos Velloso – A ADPF é uma das notáveis criações da Constituição Federal (CF) de 1988. Não veio apenas para suprir a lacuna da ADI, que não se aplica a leis anteriores à CF/88, nem para efetivar o controle concentrado, no STF, das leis municipais frente à CF. Aliás, no ponto, a disposição da Lei 9.882/99 poderia ser acoimada de inconstitucional, dado que a CF não admite o controle concentrado de lei municipal, tanto no STF quanto nos tribunais estaduais. Cumpre registrar que é questão da inconstitucionalidade superveniente, que o Supremo Tribunal sempre entendeu inexistir. É que a questão, no ponto, resolve-se de conformidade com a doutrina de Kelsen, do não recebimento, ou não recepção, pela Constituição nova, das normas com esta incompatíveis. A questão da inconstitucionalidade das normas anteriores, frente à Constituição velha, seria resolvida no controle difuso.
- Após a promulgação das leis 9.868 e 9.882, entidades de classe passaram a ajuizar mais ADIs e ADCs no Supremo e começaram a ajuizar também ADPFs. Hoje, grandes temas são analisados pelo STF por meio desse tipo de ação. Em sua visão, a que se deve o ajuizamento de ações no STF sobre grandes temas?
Ministro Carlos Velloso – É verdade. Grandes temas são analisados e discutidos pelo Supremo Tribunal, hoje, muito mais em razão da compreensão no neoconstitucionalismo do que em razão da existência das mencionadas leis. O certo é que o Supremo Tribunal é, hoje, muito mais aberto, no controle concentrado, às postulações da sociedade. É de justiça mencionar, entretanto, que esse movimento que é devido, sobretudo, à Constituição de 1988, que alguns sustentam ser, no Brasil, o marco histórico do neoconstitucionalismo, começou nos anos 1990. Foi em 1993 ou 1994 que o Supremo Tribunal decidiu pela inconstitucionalidade de uma emenda constitucional – dispositivos da EC 3, de 1993. Mas a tendência cresceu e muito, nos anos 2000, e isto se deve muito ao ministro Gilmar Mendes, que tem trazido para o Supremo princípios e regras do controle concentrado praticado pelos tribunais constitucionais europeus, principalmente pelo Tribunal Constitucional alemão. Na verdade, ocorre, no momento, como que uma germanização da jurisdição constitucional brasileira, o que é muito bom, sobretudo para a sociedade. Torço para que essa tendência continue.
- O senhor foi, inicialmente, relator da ADI 2591 (a ADI dos Bancos), cuja relatoria passou depois para o ministro Eros Grau. Esse foi um dos grandes temas discutidos no Supremo Tribunal em favor da sociedade?
Ministro Carlos Velloso – Sim, fui relator da ADI 2591. Infelizmente, fui aposentado e não pude concluir o meu trabalho. Votei pela aplicação do Código do Consumidor às operações bancárias. Excluí os juros, porque tinha vigência, na época em que proferi o voto, o art. 192 e incisos, da CF, que exigia lei complementar para regular os juros, questão nesse sentido resolvida pelo Supremo, numa ação direta do início dos anos 1990, na qual, aliás, fiquei vencido, porque entendia que os juros poderiam ser fixados em 12%. A Emenda Constitucional 40, de 2003, alterou o art. 192 e revogou os incisos deste. Assim, quando terminou o julgamento, a situação existente era a fixada pela EC 40/2003. Certamente que o meu voto, no tocante aos juros, seria pela aplicabilidade, também, do Código do Consumidor, tendo em vista as alterações trazidas pela citada EC 40. Ou teria sido pelo não conhecimento da ação, no ponto, tendo em vista a alteração e revogação do art. 192 e incisos da CF. Neste caso, prevaleceria, então, o Código de Defesa do Consumidor relativamente aos juros.
Fonte: STF
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